Crítica | Audiovisual


Foto de divulgação

QUEIMEM OS POETAS MALDITOS!

junho de 2018

Edição: 20


Sobre “Tropykaos” (2015), de Daniel Lisboa

Não é porque você se tornou artista que isso te eximirá de ser um completo idiota. Ser artista não te salva de nada: nem das agruras da vida, nem da timidez, nem da falta de consistência política, nem da burrice, nem da canalhice. Existem tantos artistas canalhas quanto obras canalhas. Mas há também, ao longo da história da arte, centenas de artistas canalhas que beiraram a monstruosidade moral e nem por isso deixaram de produzir obras absolutamente não-canalhas.

Talvez a única exceção seja a burrice. O sofrimento cria, a timidez cria, a ignorância política cria, mas a burrice, não. O artista burro é um sujeito condenado desde o princípio à indignidade total, tanto em matéria de vida quanto de arte, contando aí com todas as suas possíveis imbricações. E se alguém como Romero Britto traz estampada na testa e nos quadros a marca indelével da burrice, ao menos um tipo de inteligência deve possuir: a do marketing.

Acontece que os problemas do artista vão mudando ao decorrer do tempo. Se assistirmos Andrei Rublev (1966), de Andrei Tarkovsky, acompanhando a trajetória sofrida de um pintor medieval que passa do aprendizado à maturidade artística (isto é, se o acompanhamos sem dormir, porque o mundo está dividido entre pessoas que dormem em filmes e pessoas que não dormem, e os filmes de Tarkovsky são prato cheio para os sonolentos), logo percebemos que seus objetivos e códigos morais já se encontram tão distantes de nós quanto os de um samurai.

Tropykaos apresenta o poeta Guima como quem o joga numa cova de leões. Ele tem tudo para ser um completo idiota contemporâneo: branco, homem, heterossexual, olhos verdes, romântico, hipocondríaco, neurótico-obsessivo, paranoico, medroso, burguesinho, poser, sociopata, carente, sentimental, tímido, drogadito e dono de um talento duvidoso (suas poesias são bem meia-boca). Guima nem sequer consegue ser um anti-herói como o são Macunaíma ou o alter-ego de Robert Crumb – estes são inteligentes, safos, ácidos e remetem a personagens mitologicamente demoníacos, como Dionísio ou Arlequim. Se assim for, devemos acompanhar Guima não pela via da identificação (o jeito mais tradicional de acompanhar heróis), mas pela via da derrisão, do cinismo, da crítica e da ironia.

Então é lógico que a ironia não poderia surgir da presença do próprio Guima – de sua boca ou de suas ações. Se o poeta demonstrasse qualquer traço de ironia, teria, obviamente, alguma inteligência; tendo alguma inteligência, ao menos deixaria de ser um completo idiota; isso o tornaria mais próximo daquele herói que um espectador genérico espera ao ver um filme: a confirmação da sua mais alta estima egoica; a projeção unilateral e superpoderosa de suas próprias fraquezas mentais, morais ou corporais, transformadas em superpotências pela alquimia do labor ficcional.

Só restaria, portanto, plasmar essa derrisão ao próprio Guima por meio da linguagem cinematográfica. Seria pelo olhar da câmera, pelo ritmo da montagem e pelos encontros com outros personagens que poderíamos nos conectar a uma possível crítica ao próprio mito do artista maldito.

É nesse sentido que o filme nos apresenta uma amálgama perigosa –  e nem sempre bem executada – entre a secura do realismo e a fabulação vertiginosa do fantástico, onde os planos fixos, típicos de uma cinematografia contemporânea demasiadamente sociológica, encerram personagens quase desprovidos daquela humanidade que identificamos, geralmente, com certa profundidade psicológica e meios-tons sentimentais. Os personagens de Tropykaos estão a um passo – e sempre aí, no limite – da superficialidade alegórica. Mas tal superficialidade, quando se trata da alegoria, é, na maioria das vezes, bem vinda. É justamente ela que faz do personagem uma película fina dividindo dois mundos: o real e o imaginário.

Guima é um poeta que vive num apartamento sujo e vazio no centro da cidade. Sua meta de vida é consertar o ar-condicionado e pagar as contas de luz sempre atrasadas, já que não tem dinheiro devido à crise criativa disparada por uma fobia irracional de raios solares. Essa fobia o leva a querer – a qualquer custo – consertar o eletrodoméstico adorado.

Se encaramos o roteiro pela via realista, a base da narrativa parece bastante verossímil. Mesmo que pertença a classes mais abastadas, a vida de um artista brasileiro é permanentemente acossada pelos ditames da política de editais, tornando-o vulnerável aos altos e baixos do mercado e do Estado neoliberal. Guima deve entregar seu livro ao Estado para receber a segunda parcela do pagamento. Recebendo o pagamento, é claro, poderá pagar as contas de luz e até, quem sabe, comprar um novo ar-condicionado.

Já no plano do fantástico – que briga o tempo inteiro com o realista – há a fobia dos “raios ultra-violentos” (é assim que os raios solares entram no registro alegórico, incorporados aos trocadilhos de um poeta ruim). Se existem pessoas que simplesmente sofrem de fotofobia, Daniel Lisboa projeta em Guima um medo incomensurável do próprio Sol enquanto entidade. É através dessa hipertrofia de um fato cotidiano corriqueiro que o diretor consegue transformar a paisagem de toda a cidade. O Rei Sol redime a urbes de sua inocência fingida, transmutando-a numa espécie de monstro distópico. A cidade inspira, expira, transpira. Os planos impessoais são importantíssimos. Ali amplia-se a visão obsessiva que insiste em ocupar-se apenas do poeta. Salvador surge, então, impressa em suor e musgo. Há os labirintos de um submundo escuro, típicos de qualquer grande cidade brasileira. Há a praia onde os corpos se banham ao sol sem vergonha alguma. Há as estátuas que suam bicas. Há o sorriso da baiana de acarajé, sutilmente demoníaco. Há a luz branca onipresente, como a do meio-dia, que parece espremer a tudo e a todos contra o calor do asfalto. Os ar-condicionados, vistos de baixo, deixam cair suas gotas de salvação – viram entidades dotadas de vida própria. As máquinas de fazer frio choram pelo destino de Guima e da malfadada cidade.

Mas eu não choro. Aliás: que morram os poetas malditos – incluindo aquele poeta chatíssimo de A Febre do Rato (2011). Que morra a velha Bahia e leve com ela todos os sósias de Castro Alves.


Daniel Guerra é editor da Barril, crítico de arte e diretor de teatro.

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.