Crítica | Cênicas


Foto de Andrea Magnoni

DAS FISSURAS SINCOPADAS

março de 2016

Edição: 1


Vivemos um período bastante complexo, e freqüentemente essa complexidade transparece de forma paradoxal. O fato é que vai tornando-se mais e mais visível – não só na arte – um descompasso problemático entre representação e acontecimento, identificação e diferença. O paradoxo é o seguinte: se de um lado estamos cientes de que uma forma de representação do mundo (ou até todo um sistema de representação) morreu, de outro há emergência e luta por novas estratégias representativas – e mais especificamente, de representatividade política e social.

Mas é curioso o fato de que mesmo em meio a essa complexa conjuntura, existam aqueles que optem por uma volta esquecida ou cínica aos regimes de identificação legados por uma história evidentemente colonialista. (Toda imagem carrega, quer queira quer não, essa história). Sobre isso o campo teatral soteropolitano soube testemunhar sempre. Porque até hoje não se colocou seriamente em xeque o regime da representação no campo da estética cênica, e o que se busca no mais das vezes – e de forma geralmente fracassada – é uma revitalização do teatro baseada naquela velha idéia de identificação imediata entre público e obra tal como era buscada nos famosos “tempos dourados do teatro baiano”, quando a cultura do axé-pra-gringo-ver era relacionada com o fato concreto de que o turismo e as políticas da cultura eram pensados sob a mesma ótica. Hoje, passados alguns anos e com outra geração tomando a dianteira do pensamento sobre a cena, vemos que aquele brilho dourado-dendê era basicamente circunstancial. Agora não há mais pelo que lamentar, e os problemas do presente são tão complexos que não permitem o luxo da nostalgia.

Elegi analisar a obra de Mônica Santana porque aí se coloca em evidência a fissura paradoxal entre a morte da representação e uma busca de representatividade, entre presença da diferença (singularidade) e regime de identificação. Mas ela não faz como os caracterizados acima; não escolhe uma volta nostálgica (e aliás, impossível) à representação. Situa-se num ponto crítico e articula suas intensidades. Portanto essa é uma boa ocasião para a discussão sobre a contemporaneidade no teatro.

Subsiste em Isto Não É Uma Mulata dois planos que por vezes se comunicam e por outros se afastam. É que sua estrutura, potencialmente performativa (revela-se como intenção), se dá ao mesmo tempo – falando tosca e rapidamente – como “espetáculo de representação”. São signos o que vemos serem emitidos pela atriz. E estes signos estão carregados de informação. Informação identificada não só à manifestação política da atriz (como sempre faz questão de pontuar, mulher negra) como ao fluxo emergente do assunto da representatividade nas redes sociais, na grande mídia, e é claro, no cotidiano mais imediato. A questão então, seria não se perguntar “como este espetáculo executa bem ou mal tais ou quais representações” mas sim “como este espetáculo, que se propõe justamente a problematizar a representatividade, trata a representação? Como se dá a articulação deste pensamento cênico?”

É claro que se poderia analisar unicamente aquela superfície de informação. Os analistas do discurso encontrariam aqui material abundante, assim como todo um campo de produção teórica feminista e negra (do qual a própria atriz faz parte ativa, como jornalista e pesquisadora em arte). Mônica não cessa de apresentar ao público, tanto verbal quanto gestualmente, índices de sua performance diária, empoderamento e incessante auto-investigação. Tudo isto ali delineia-se muito claramente, e se há sessões em que ocorre uma comoção intensa é porque há sem dúvida uma identificação direta entre público e ato. Vemos que essa identificação é efetiva porque está conectada ao fluxo dos tempos e à imanência conjuntural das urbes.

Há necessidade. Então a atriz torna-se representante de uma voz coletiva e testemunhamos a execução efetiva de um teatro didático de identificação política, de forma que escrever uma crítica sobre a “qualidade do espetáculo”, elencar “destaques” bem executados entre os elementos formais da cena ou sopesar a “interpretação da atriz” seria recair nos principais equívocos reproduzidos por tanto tempo pelas escassas críticas da nossa pequena-imensa soterópolis.

Vou permanecer portanto justo na fissura entre a estrutura de sua performatividade pretendida

– que afinal encontra-se concentrada no aspecto autobiográfico – e a superfície de representação simbólica, discursiva – que é a tônica geral do trabalho.

Como presenciei o espetáculo no Teatro Gamboa Nova (em sua primeira temporada), fico com ele. Pois bem, a escolha deste teatro, somada à posição frontal em relação a um público sentado e na maior parte das vezes escondido pela escuridão reforça um caráter expositivo do texto-manifesto. Digamos que todo manifesto seja, na sua raiz, expositivo. Mas existem formas e formas de expô-lo. A forma deste manifesto em particular retoma a expositividade fundante e a desenvolve ainda mais. Então vemos um texto-corpo-palavra tomando forma à nossa frente, de maneira consecutiva, causal e linear.

Tomemos como exemplo o primeiro movimento: há o discurso-imagem da faxineira, em que a atriz vem “limpando” o espaço do teatro dedicado ao público. Depois ocorre uma progressiva transformação/revelação da atriz-em-situação, começando pela sua subida ao palco. A partir daí o espectador fica com alguns rumos a tomar. Ou ele diz: a) eu sabia desde o início que era atriz mas mesmo assim eu “compro” – porque entendo “racionalmente” a idéia e concordo; b) eu não sabia, me espanto, coloco em xeque minhas questões racistas naturalizadas; c) eu sabia desde o início mas não compro porque mesmo entendendo, “intelectualmente” não concordo com aquilo; d) não importa se sabia antes ou não, o que importa é que eu me identifico de corpo e alma e memória com aquilo, então não só compro como também apoio; e ainda e), f), g) e milhões de outras possibilidades.

O que acontece é que, ao decorrer do desenvolvimento da primeira imagem, as ramificações possíveis (a, b, c, d…) vão dando lugar novamente a um só caminho de afunilamento. É realmente a estrutura de um texto expositivo. Existe ali na frente um corpo-suporte de idéias e informações bem desenvolvidas anteriormente ao acontecimento, e sua consequente e progressiva revelação a público. Então, se a imagem-faxineira, quando se transforma, abre-se em milhões de rumos imprevistos de espectação/relação, logo depois é trazida de volta ao curso normal e uno do discurso-rio. É como se aqueles afluentes abertos anteriormente – para continuar com a metáfora – voltassem para o mesmo leito original, numa operação de enrijecimento semântico. E então o corpo-suporte continua a nos mostrar signos: em forma de gestos, de apropriação de objetos, de palavras. É como se o palco fosse uma grande tela em que as palavras e gestos passassem ao decorrer de sua duração. Então o manifesto vai sendo falado (não apenas pela voz), e o espectador vai se pondo a par daquela forma retórica.

Ora, é claro que se vê um deslocamento político-performativo. Afinal é a autobiografia de uma atriz negra que está em questão. Isso é evidente. Existem informações sendo passadas, existe um corpo que é materialmente e semioticamente – na “superfície mais profunda, a pele” – o que diz. Mas por exemplo: o que moveria e provocaria um espectador a priori não-identificado ou até resistente, já que o manifesto teria a intenção de ser manifestado e fazer manifestar? Tão logo formulo essa pergunta me pergunto a mim mesmo se é necessária, se não feriria a intenção da própria criadora, que pode muito bem ser específica. Pode ser que a intenção seja realmente e radicalmente pedagógica, emergencial, aliás, como em muitos manifestos: inflamar, ensinar, informar, servir de exemplo etc…No entanto, no movimento final do espetáculo ocorre uma grande irrupção da política do corpo-em-vida (na sua singularidade) por sobre a política da representatividade e sua tendência cristalizadora. Mônica se veste de passista de escola de samba, e a partir de então é todo um corpo-samba e uma verborragia irônica totalmente sobrepostos, um passando a rasteira no outro, e os dois juntos dandovoadoras no espectador. Este movimento performa; quero dizer, coloca a crise na passarela – movimento em aberto, disposto a múltiplas entradas. Ora, se um corpo é o que fala, por isso mesmo essa fala estará carregada de corpo, de suor, de “falhas” – que aliás já não são falhas e sim novos discursos brotados do instante.

Então temos o corpo que samba (“na cara da sociedade”?)… Ele poderia cair, ele poderia ir sambando pra rua, ele poderia fazer qualquer coisa. Poderia cuspir na minha cara, por ex. a do “crítico performado” que escreve agora. Mas surpreendentemente (e agora sou realmente um crítico disponível ao abate) esse corpo volta à moldura do palco, volta pro discurso e pra passagem de informação. Mas também joga outra pedrada no final, que é quando Mônica fala diretamente pra gente: vejam, eu posso ser o que eu quiser. Aqui o manifesto extravasa do texto pela sua própria afirmação enquanto retórica, e suas rotas são imprevisíveis. É paradoxal mas assim é sua efetividade. Antes, percebia-se a maioria das ações dessa maneira: “ela quer falar isso e aquilo, então usa essa metáfora e aquela, aquele objeto etc.” Mas o final do qual trato faz o contrário: “eu vou falar isso e já estou falando” (sem metáfora-apoio). Aqui a atriz abandona o manifesto como discurso antecipado e coloca o corpo na roda como manifestação irruptiva desse manifesto mesmo. Existe uma ironia ácida que aciona e provoca outras possibilidades do estar. Nos destranquiliza…

  

Mas tudo isso são possibilidades. Talvez um manifesto político não necessariamente tenha de transparecer como tema, como forma da informação. Quando se trata de um pensamento cênico — diferentemente do retórico ou midiático — o político encontra ocasião de extrapolar a linearidade e tomar para si a problematização de suas próprias estruturas. Mas afinal, por onde atua a política senão por estruturas? Temas e informações são resíduos, e não à toa certo tipo de jornalismo (cada vez mais frequente) seja evidentemente carniceiro, e a multiplicação de tags e hashtags testemunham a favor do argumento.

Acionar outras possibilidades do estar significa acionar também outras possibilidades do pensar e do politizar, e é claro que estas por sua vez acionam a produção de novas formas de representatividade  — ou sua negação. Isto Não É Uma Mulata abre uma necessária e potente discussão sociopolítica, mesmo que no sentido do pensamento estético recorra a estruturas que reprimam a própria radicalidade performativa que daí emana. As estruturas, conscientes ou não, determinam o discurso e vice-versa, de maneira que se há signos transgressores de um lado, pode ser que por um outro atuem signos obscuros, subterrâneos, herdeiros últimos de uma história em visível processo de falência (como já pontuei, tal falência abarca a morte da representação enquanto unidade irrevogável). E o que é afinal o espaço de um teatro senão e antes de tudo morada de fantasmas? Não que não se deva reabitá-lo, espero que me faça entender…

Tomei o cuidado de acompanhar o trabalho ao decorrer de sua própria imanência, e a partir do ponto de abertura mais potente interrogá-lo retroativamente, enquanto outros insistiriam em impor faltas criadas por uma transcendência valorativa qualquer. Neste ponto, seguindo a reverberação do próprio espetáculo, sinto a necessidade de expor meu lugar de fala (sempre precário aliás, consequência da dieta política que me imponho diariamente) — e não nos enganemos, isso ainda é a obra atuando, isso é sua estética, sua estrutura, que ainda age e reage… aqui e agora. Pois bem; o neocrítico que vos fala, nascido e criado em Salvador, é (de)codificado como homem branco (mesmo que se debata dentro dessa definição — e os melhores diriam com um lindo sorriso irônico: “pode se debater à vontade meu caro…”). Mas é evidente que isso não autoriza à cegueira, muito pelo contrário. É certo, basta olhar para os lados: principalmente nesta cidade o racismo determina todas as relações, e de forma sistêmica, multilateral; ou seja, ninguém deveria sequer dar-se ao luxo de se pensar fora da situação. Para qualquer um minimamente atento tudo de repente fica muito complexo — e isso fere por todos os lados… Mas a complexidade nunca foi desculpa para o silêncio.

Até hoje não se colocou em xeque o regime da representação

 

Rebate à crítica “Das fissuras Sincompadas” de Daniel Guerra

Por Mônica Santana

Foto de Andrea Magnoni

Rebater a crítica de Daniel Guerra foi a tarefa que me foi pedida. Exercício complexo. Mais ainda complexo quando a crítica que li me ensina sobre meu trabalho. Não tenho eu, Monica Santana, criadora de algumas das camadas de Isto Não É Uma Mulata absoluto controle da obra que construí. Então a crítica de Guerra diz desse olho que me vê – o outro com que apreendo e aprendo.

Rebater a crítica de Daniel Guerra num dia em que pouco consigo dar conta de mim, pois estou alma, corpo e medo engajado no caos político que forjaram para nós, torna-se um exercício ainda mais difícil.

Guerra – esse moço que tem esse nome inflamado – situa minha obra como didática, também como necessária. Agradeço. Sim, é um trabalho didático. Pedagógico sim. Desavergonhadamente político. Ele usou a palavra necessário. Que posso dizer se não…é mesmo. Pelo menos para mim, é necessário. Veio das minhas urgências – sendo sim, autobiográfico, como é muito daquilo que produzimos, mesmo quando não queremos -, da necessidade de falar da (in)visibilidade da mulher negra, dos estigmas e rótulos que nos são cobrados, do próprio essencialismo que  adotamos na hora de positivar-nos. Na negação encontrei a via positiva de afirmar a vocação ontológica que todas – sim, assumindo o lugar de fala de mulher, negra – temos.

No seu exercício crítico, Guerra preferiu não falar dos aspectos formais, com as razões que ele próprio explícita. Me pergunto se tenho que tecer as motivações dos procedimentos que adotei. Talvez. Escolhi sim a ironia. Sim, por ser irônica, mas também por seu potencial discursivo, criativo e cruel. Acredito que na inevitável tarefa do artista negro falar, biograficamente falar, o racismo está lá…colocado em algum momento de sua vida, de sua obra. Do processo, da travessia ou do próprio discurso. Pensei nos discursos do corpo como potência – tendo nele carne e verbo, evitando os fáceis panfletarismos em que eu poderia cair na verborragia. Não posso dizer se tenho êxito. Não cabe a mim.

Devo dizer que ontem, ao ler uma lista onde vários artistas de todo Brasil estavam enumerados, taxados de pessoas a serem execradas, perseguidas, boicotadas, senti medo de não mais poder continuar fazendo meu trabalho. Não poder mais subir no palco e fazer meu teatro / performance que sim é político. De não mais poder falar. Sei que a escuta da minha voz, como a de tantas outras é falha e seletiva. Mas me deixem falar. Me deixem falar. Me deixem…falar.

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