Ao editor de The Reflector.
(Versão de 1818)
Sr. Refletor, nasci sob a sombra do campanário de São Dunstan, precisamente aonde confluem habitantes de leste e oeste desta cidade duplicada, onde eles se encontram e se acotovelam em amigável oposição em Temple-bar[1]. O mesmo dia que me trouxe ao mundo viu Londres celebrar com felicidade sua grande festa anual. Sou incapaz de olhar para isso senão como um presságio jovial do futuro de grande benevolência que eu estava destinado a prestar a esta cidade, assemelhando-se em espécie àquela solicitude que todo chefe de governo deve sentir por tudo o que concerne seus interesses e bem-estar. De fato, considero-me de certo modo um prefeito especulativo de Londres: pois embora circunstâncias infelizes obstruam a esperança de jamais atingir a dignidade de uma corrente de ouro e um sermão de sanatório; contudo, direi de mim mesmo com toda sinceridade que Whittington e seu gato[2](emblema perfeito da vigilância e um roupão peludo) estão aquém do afeto que nutro por seus cidadãos.
Nasci, como ouviste, na multidão. Isso gerou em mim uma completa afeição por esse modo de vida, somado a uma aversão quase intransponível à solidão e às cenas rurais. Esta aversão nunca foi interrompida ou suspensa exceto por poucos anos de minha juventude, durante um período no qual meus afetos se voltaram a uma jovem charmosa. Todo homem apaixonado, ao menos por um tempo, vicia-se em arvoredos, prados e rumorejos de córregos. Durante esse curto período de minha existência, contraí familiaridade pelos objetos rurais o suficiente para entender razoavelmente bem os poetas quando declamam, em termos apaixonados, suas preferências pela vida no campo.
De minha parte, passado esse espasmo, não hesito em declarar que uma multidão de rostos felizes que se amontoam no fundo da plateia do Teatro de Drury-Lane, às seis da tarde, produz em mim dez mil prazeres mais sinceros do que todos os rebanhos de ovelha simplórias que jamais embranqueceram as planícies da Arcádia ou de Epsom Downs.
Em nenhum outro lugar essa paixão por multidões é tão saciada quanto em Londres. Alguém que se entedia na Fleet Street só pode ter uma receita rara de melancolia. Sou naturalmente inclinado à hipocondria, mas em Londres ela se esvai, assim como todos os outros males. Frequentemente, quando sentia o cansaço ou desgosto do lar, lançava-me na multidão da Strand e alimentava meu humor até que as lágrimas banhassem meu rosto devido a simpatias indizíveis pelas múltiplas imagens em movimento[3]que ela nunca deixa de apresentar a toda hora, como cenas de uma pantomina oscilante.
Gin Lane - Gravura de William Hogarth
As próprias deformidades de Londres, que a outros causam desgosto, por força do hábito, não me desagradam. A sucessão infinita de lojas, onde a Fantasia confundida com Fanfarra é suprida com perpétuos atavios e quinquilharias, não me despertam qualquer aversão puritana. Contemplo com prazer cada apetite sendo suprido por seu alimento apropriado. O freguês obsequioso e o comerciante obsequioso – coisas que vivem pela reverência e coisas que só existem pela homenagem – não me afetam com desgosto; pelo hábito, nada percebo além da urbanidade, onde outros homens, mais refinados, descobrem a mesquinhez. Amo a própria fumaça de Londres, pois ela se tornou o meio mais familiar à minha visão. Vejo grandiosos princípios de honra operando no ringue sujo que rodeia dois combatentes em punho, e vejo princípios de justiça não menos eternos na revelação de um batedor de carteiras. O assombro salutar com o qual uma execução é observada me convence mais forçosamente do que cem volumes de política abstrata de que o instinto universal do homem em todas as épocas se curvou diante da ordem e do bom governo.
Assim, a arte de extrair moralidade dos incidentes mais comuns de uma vida citadina é adquirida pela mesma alquimia de boa natureza com a qual os habitantes da Floresta de Arden, em um campo belo:
Achavam falares nas árvores,
Livros nos ligeiros riachos,
Sermões nos seixos e bondade em toda parte[4].
Onde o spleen se alimenta senão em Londres? Humor, Interesse e Curiosidade sugam seus seios ilimitados sem a possibilidade de se saciar. Amamentado como tenho sido por seu tumulto, sua multidão, sua fumaça querida, o que teria feito em toda a minha vida se não tivesse emprestado meu usurário coração a tais cenas!
Senhor, sou seu servo fiel,
UM LONDRINO.
Charles Lamb e o Romantismo Metropolitano
Charles Lamb nasceu no dia 10 de fevereiro de 1775 em Londres, de onde jamais se mudou e raras foram as vezes que se ausentou da cidade. Caçula do casal Elizabeth Field e John Lamb, apenas dois dos seus irmãos sobrevieram: Mary e John. De família simples, o pai era funcionário do advogado Samuel Salt. Em 1782, Lamb foi enviado ao internato Christ’s-Hospital. Os anos de escola foram magistralmente narrados no ensaio “Christ’s-Hospital Five and Twenty Years Ago”, no qual o narrador, Elia – a máscara pseudonímica de Lamb –, cria um distanciamento em relação ao autor, como se nota nesta passagem: “Nas ‘Obras’ do sr. Lamb, publicadas um ou dois anos atrás, há um elogio magnífico da minha antiga escola”. O narrador se apropria ainda dos fatos e sentimentos narrados por outro aluno do Christ’s-Hospital, Samuel Taylor Coleridge. Foi lá que Lamb e Coleridge se conheceram e estabeleceram uma amizade por toda a vida. Foi lá também que Lamb deu os primeiros sinais do seu temperamento melancólico e hipocondríaco e dos distúrbios mentais que marcariam sua história pessoal e familiar. Do Christ’s-Hospital ele foi comissionado para assumir o cargo de escrivão na South-Sea House. A Companhia South Sea cuidava das relações comerciais entre a Inglaterra e o Atlântico Sul, que já se encontravam em declínio na época, por conta das pressões para o fim da escravidão. Sabe-se que houve em South Sea um funcionário de nome Felix Elia, colega de Lamb naqueles tempos. Não por outro motivo, é com “The South-Sea House” que Lamb inaugura sua principal obra: Os Ensaios de Elia. Quando South Sea rumava à falência, Lamb foi transferido para a Companhia das Índias Orientais, onde ocupou o mesmo cargo de escrivão por trinta e seis anos, “no confinamento maçante do escritório”, como lemos no ensaio “The Superannuated Man”. Também neste ensaio, o narrador, Elia, se recorda do “jovem colega de firma[5]”, L––, ou seja, ele próprio, Lamb. Quase todos os ensaios de Elia narram momentos da vida do autor e colocam no texto os amigos, as leituras e os espaços de sociabilidade comuns a ele.
Contudo, há um tema de sua vida inexplorado nesses ensaios, sua tragédia doméstica. Em 1796, depois de um dia de trabalho na South-Sea House, Lamb, ao chegar em casa, encontrou a mãe morta, o pai gravemente ferido e a irmã, Mary, banhada de sangue. Os pais tinham sido vítimas de um surto psicótico de Mary, que os esfaqueara. Este não fora o primeiro e nem seria o último surto psicótico da irmã. A loucura era decerto algo que atravessava a família. O próprio Lamb, um ano antes, ficara internado por seis semanas em um sanatório. Para impedir que a irmã fosse confinada pelo resto da vida, ele se comprometeu com as autoridades que a partir de então ela ficasse sob os seus cuidados. Por esse motivo, Lamb nunca se casou, traço comum que compartilha com seu narrador, Elia. A solteirice é com certeza um dos temas literários mais explorados em sua obra. Após a morte do pai, não foram poucas as vezes em que Lamb se viu forçado a internar a irmã temporariamente em um sanatório. Há relatos de amigos e vizinhos que o viam, com o rosto banhado em lágrimas, toda vez que retornava do hospício. O melhor registro desses episódios encontra-se nas correspondências trocadas com Coleridge. Em uma delas, Lamb diz: “Mary ficará boa novamente, mas é terrível o fato de ela estar constantemente suscetível a essas recaídas – tampouco é o maior dos males o caso de ela e da nossa história ser bastante conhecida por todos que nos cercam (…). Estamos de certo modo marcados[6]”.
Quem quer que se aproxime de Lamb, inevitavelmente se depara com sua trágica história familiar. No entanto, quem lê a sua obra, exceto as belíssimas correspondências do grande missivista que foi, jamais poderia imaginar que ela fora escrita por alguém marcado por uma experiência trágica como essa.
Depois de algumas tentativas frustradas com sonetos, peças teatrais e a narrativa A Tale of Rosamund Gray, Lamb se revelou um exímio contador de histórias em Contos de Shakespeare, obra escrita a quatro mãos, por ele e Mary. Mas é no tom exato e na medida precisa entre poesia e prosa de seus ensaios de periódicos que encontramos o Lamb humorista, a sua melancolia espirituosa[7]. Desses ensaios, os mais conhecidos, os mais egotísticos e autobiográficos são, sem sombra de dúvidas, os Ensaios de Elia.
Ao contrário de autores que parecem nascer prontos – poderia citar o exemplo de Flaubert, cujo romance de estreia não é outro senão Madame Bovary –, foi apenas após anos de escrita na imprensa periódica que Lamb lapidou sua prosa. Contudo, este texto, que ora apresentamos ao público brasileiro, foi escrito quando o autor contava vinte e sete anos, em 1802, e ele transmite uma concepção poderosamente coerente e moderna. Em estudo recente sobre “O Londrino”, diz Gregory Dart: “Em questão de poucas linhas, temos a primeira formulação no século XIX do escritor como flâneur, do homem da multidão, que foi tão importante para Baudelaire e Benjamin[8]”. O escritor que transforma em literatura atividades a esmo nas ruas tornou-se um tema particularmente profícuo nos séculos XIX e XX; basta lembrar o conto de Edgar Allan Poe, “O Homem da Multidão”, o poema de Charles Baudelaire, “A uma passante”, o ensaio de Virginia Woolf, “Batendo Pernas nas Ruas: Uma Aventura Londrina”, a crônica de Rubem Braga, “A borboleta amarela”, entre outros. Ao analisar “O Londrino”, as cartas e os ensaios do autor de mesmo período, Dart desenvolve o argumento de que o romantismo metropolitano é coevo ao romantismo primitivista (de um Wordsworth e um Coleridge, por exemplo). Lamb, como vimos, foi amigo de Coleridge por toda a vida. Foi íntimo, também, de Wordsworth. É a eles, possivelmente, que o ensaísta se refere quando fala da preferência dos poetas pela vida no campo e do modo apaixonado com que cantaram “arvoredos, prados e rumorejos de córregos”. Encontramos em “O Londrino” o mesmo “olho imóvel pela força da harmonia[9]” com o qual Wordsworth viu a árvore, a pedra, o regato, e a mesma linguagem que revestiu de vida, forma e cor os objetos da natureza. Todavia, ao contrário de Wordsworth, Lamb celebrou a metrópole e o fez em prosa, não em verso; ou melhor, em prosa poética [poetical prose]: termo empregado por ele para se contrapor ao estilo do amigo William Hazlitt[10].
O que há de poético no mundo prosaico da metrópole, mundo este marcado pela fumaça feia, por uma multidão de transeuntes que se acotovelam, por batedores de carteira; enfim, pelo consumo, pelos encontros e desencontros, pela solidão? Precisamente esses elementos. Lamb converte a alquimia dos habitantes da Floresta de Arden, em Shakespeare – com a qual “achavam falares nas árvores, livros nos ligeiros riachos” –, em alquimia das ruas, numa receita contra a melancolia; ou, como finamente observou Vinicius de Moraes, a propósito de Lamb, contra seu estado de espírito maníaco-lírico-depressivo[11]. O spleen precisa ser alimentado e seu alimento, para Lamb, vem do tumulto, da multidão e da fumaça querida da metrópole. Se não podemos afirmar com segurança que Poe e Baudelaire leram “O Londrino” – claramente, Benjamin não o leu –, neste ensaio, Lamb legou à posteridade o sentimento e a linguagem com os quais nós, metropolitanos, sentimos e expressamos nossas angústias e esperanças, nossos temores e amores na vida da cidade grande.
Tradução e artigo de Daniel Lago Monteiro
[1] Temple Bar é a principal entrada do centro de Londres (City of London), em seu ponto de encontro com Westminster. As ruas que confluem para Temple Bar são Fleet Street, lado leste, e The Strand, lado oeste. [N. T.]
[2] Dick Whittington (c. 1354-1423) foi prefeito de Londres. Sua história se tornou lendária e foi representada em inúmeras baladas. A mais antiga edição em prosa é de Thomas Heywood, 1656. Diz a lenda que Whittington era de família simples e ascendeu a condição de prefeito depois de adquirir um gato para conter a proliferação de ratos e o avanço da peste. Na época de Lamb, Whittington e seu gato era um dos temas favoritos de pantomimas. [N. T.]
[3] Em inglês, “moving pictures”. A expressão na época estava relacionada com o Eidophusikon, considerado uma das formas primitivas do cinema, que consistia em um teatro em miniatura na qual as imagens se movimentavam acrescidos de efeitos de luz e som. [N. T]
[4] Shakespeare, Como Gostais. Ato II, cena I.
[5] Lamb, Elia & The last essays of Elia. Ed. Jonathan Bate (Oxford: Oxford University Press, 1987), pp. 219-221.
[6] Lamb, The Works of Charles Lamb, (Londres: Edward Moxon, Dover Street, 1850. v. II. v. 2), p. 86, grifo do autor.
[7] Hunt, Leigh, Selected writings, Edited by David Jesson-Dibley. (Exeter: FyfieldBooks, 2003). p. 93.
[8] Dart, Gregory. Metropolitan Art and Literature, 1810-1840, Cockney Adventures. Cambridge: (Cambridge University Press, 2012), p. 143.
[9] Wordsworth, William, O Olho Imóvel pela Força da Harmonia. Trad. John Milton e Alberto Marsicano (São Paulo: Ateliê Editorial, 2007), p. 93.
[10] LAMB, Charles, Selected Prose. Ed. Adam Phillips. (London: Penguin Books, 2013), p. 241.
[11] MORAES, Vinicius, Para uma Menina com uma Flor (São Paulo: Companhia das Letras, 2013), p. 53.