Festejar é o melhor acontecimento para o corpo. É um jeito de existir, uma cumplicidade. Nos tornamos um coletivo de festa em festa. Pertencemos àquele grupo através do motivo que precisa ser comemorado, ritualizado. E tem sido difícil. A morte também é um rito, mas a sua sistematização não deixa tempo pra celebrar. Talvez fique com cara de festa triste, fim de festa… mas quero fazer desse texto uma celebração à criação que tem acontecido na quarentena.
Sempre que vou começar a escrever qualquer coisa que não seja um diário, sou invadida por uma baixa autoestima sem precedentes e me acho completamente incapaz de formular alguma coisa interessante. Passados os dias de autodepreciação, começo a duvidar do desejo de “falar algo”, não encontro lógica nos discursos, me sinto autoritária e limitada à língua portuguesa com a sua memória histórica. Mas gosto das palavras, só não sei muito bem como começar. Talvez um esquente, um primeiro gole. Tem um livro chamado “História da Linguagem” que me aliviou assim: “… O sujeito falante é simultaneamente o destinador e o destinatário da sua própria mensagem, visto que é capaz de ao mesmo tempo emitir uma mensagem decifrando-a. Assim a mensagem destinada ao outro é, num certo sentido, destinada em primeiro lugar ao mesmo que fala: donde se conclui que falar é falar-se[1].”
Celebrar, então.
Com um tanto de desatenção necessária. Um descuido para não confundir palavra com poder. Fiz uma curadoria intuitiva de trabalhos que me xxxxxxxx (moveram, tocaram, comunicaram, etc. ou me encheram de uma pequena coragem). Ao longo do texto vou adicionar os sites e as páginas dos artistas, na tentativa de estabelecer redes de comunicação e forjar algumas perspectivas do fazer cênico na pandemia.
Em São Paulo, existe um espaço chamado Teatro de Contêiner Mugunzá, perto do metrô da Luz. O nome é bem autoexplicativo porque é de fato um teatro construído com 11 contêineres. Antes de ver esse lugar, nem sabia que aquelas big caixas que eu via sendo despachadas no porto ou perambulando em navio cargueiro chamavam-se contêineres. E isso já desloca completamente o olhar pra geografia do espaço. Por mais que seja um material pesado, de carga, ele constrói uma penetrabilidade muito poderosa através do seu uso. O espaço é sede da Cia. Mugunzá, que idealizou e executou o projeto, daí a explicação para parte do Mugunzá no nome.
O Teatro de Contêiner surgiu em 2016 como uma ocupação. O uso do espaço público como um espaço democrático e cultural foi se fortalecendo a partir das ações realizadas: peças, eventos, exposições, aulas, etc. Sempre na busca por estabelecer uma ponte com o seu entorno: discussões sobre cena contemporânea, gentrificação e vulnerabilidade social fazem parte da atmosfera do lugar. Ponte e ocupação foram palavras chaves na “áudio entrevista” via Whatsapp que fiz com Filipe Celestino (@ficelestino), membro da equipe do Contêiner. Filipe conta que depois de diversas reuniões, o grupo decidiu criar uma plataforma online para ocupar esse espaço que se apresentava como possibilidade: a internet. No espaço físico do Contêiner, juntamente com o grupo Pagode na Lata (@pagodenalata) e o Coletivo Tem Sentimento(@coletivo_temsentimento), estão sendo entregues marmitas, cobertores e kit de higiene para os moradores do entorno.
A Mungunzá Digital acontece em duas frentes, o site que já existia (https://www.ciamungunza.com.br) contendo um novo acervo de peças gravadas, playlists, músicas, entrevistas e pensamentos em diversas materialidades. A outra frente é o Instagram @teatrodeconteiner onde tem-se como foco o conteúdo do “Aquilombamento Digital” e de algumas outras ações realizadas. A proposta é mapear o que está sendo produzido-pensado no teatro negro em São Paulo, aquilombar, criar pontes. Filipe convidou Jhonny Salaberg (@jhonny.salaberg), Luh Maza(@luhmaza) (já disponíveis online), Ícaro Rodrigues (icarorodriguesabc), Jé Oliveira (@je_oliveiraaaa), e o coletivo O Bonde(@coletivoobonde) para integrar o aquilombamento. A cada semana sai um novo episódio discutindo questões ligadas às negritudes e aos modos do fazer teatral pandêmico, o que agrega para o projeto um super potencial pedagógico e político, além de elaborar diversas propostas estéticas. A próxima mostra é a “Bora Baêa”, com curadoria de Lana Scott(@sambadeapartamento). A plataforma segue recebendo propostas de trabalhos e parcerias. Espero que a Mugunzá Digital possa seguir na mesma lógica do Teatro de Contêiner: um espaço que pertence aos corpos, e não o contrário.
Seguindo na perspectiva das propostas coletivas, a Editora Efêmera, lançou uma chamada para peças curtas produzidas durante a quarentena e disponibilizou as dramaturgias online. Criada a partir da frustração de duas dramaturgas com o mercado editorial tradicional, a Efêmera iniciou suas atividades no segundo semestre de 2019: Lígia Souto(@lilsouto) e Pamella Martelli (@pamellamartelli) se uniram aos também dramaturgos Eduardo Aleixo(@eduardoaleixomonteiro) e Marcus Mazieri (@marcusmazieri) para “atualizar” esse repertório do que chega ao público interessado em teatro.
Para os editores da Efêmera, publicar na internet e de graça é uma forma de tornar o acesso mais fácil, democrático, e atingir um público maior. Além de reduzir os custos ligados à produção do livro físico, driblando suas limitações burocráticas e práticas, um dos propósitos é também estimular a leitura e a montagem de peças inéditas. Tem-se mais uma vez a internet como um espaço facilitador, já apontado na cena contemporânea e agora, em período de isolamento, como único meio de troca possível.
Em parceria com a dramaturga Bruna Varga (@bruvarga), escrevi o texto Suruba Para Colorir, selecionado para a publicação online de peças curtas, que foi cuidadosamente editado e diagramado com muita finesse e elegância junto com outros oito textos. A editora também propôs uma espécie de troca-troca de crítica, em que cada autor produz um pequeno texto sobre uma outra dramaturgia publicada. Tal iniciativa amplia o significado do que é ler um texto e promove a emancipação da dramaturgia em relação à encenação. Existe o interesse na leitura e na escrita de textos, e numa outra via existe também a expansão da dramaturgia enquanto palavra escrita: quem sabe a Efêmera também não se propõe a publicar cadernos de processos, desenhos, imagens relacionadas a dramaturgias teatrais, etc. O Instagram da editora é @editoraefemera e o site https://editoraefemera.wordpress.com/ – Boa leitura.
A noção de dramaturgia expandida é fundamental para o trabalho “Canção das filhas das águas” da Alarinjó Laís Machado (@obssessivadantesca), criado em parceria com o artista Diego Arauja(@diegoarauja). A vídeo performance integra o Latitude Digital Festival, promovido pelo Goethe Insitut, que tem como temática central “os efeitos da estrutura colonial”. Se a tragédia é o canto do bode, o trabalho de Laís é o canto das Aves Rasgadeiras. Com construções assumidamente épicas, a Alarinjó desenvolve uma mitologia “atlântica” e “transmigrada” através das sete mães ancestrais. Propondo uma produção de saber decolonial, as construções dramatúrgicas são do campo do simbólico e do fictício, materializadas através de ações performativas. Tem-se como imagem catalisadora um ovo sendo expelido por uma vulva. A equivalência entre vulva e boca configura o “órgão muito especial” em citação a Grada Kilomba, “…. simboliza a fala e a enunciação. No âmbito do racismo a boca torna-se o órgão da opressão por excelência, ela representa o órgão que os(as) brancos(as) querem – e precisam – controlar e, consequentemente o órgão que, historicamente, tem sido severamente repreendido[2].”
A vulva e o ovo foram considerados pornográficos e a exibição do trabalho foi limitada a uma única vez. Para além de toda a discussão sobre a legitimação da pornografia enquanto linguagem, suas explorações em relação à indústria e às representações da mulher negra na sociedade, Laís trabalha com a pergunta mote “O que um corpo é capaz de fazer?” e também pesquisa o estado de transe como relação e não uma incorporação de algo externo. Corpo, presença e relação são temáticas já conhecidas no terreno da arte, mas que ganham novos contornos no contexto da pandemia. Criar em quarentena colocou para Laís os limites da capacidade técnica de se trabalhar com o vídeo, sem menosprezar a expertise, mas fazendo uma profanação de seu uso. “Não devo lealdade a linguagem nenhuma” e assim se fez o verbo. Ou melhor, o vídeo. Quem se interessar mais pelo trabalho pode entrar em contato com Laís, ou escrever para o festival no endereço acima, pedindo pela liberação do link da performance. Pudor e veto em relação ao corpo não é novidade para uma terrorista sexual[3].” das redes. A conversa com Laís também apontou para a possibilidade de acesso e formação de plateia que pode vir a acontecer com os trabalhos realizados via vídeo, pensando na pluralidade de público que navega na internet.
Seguindo na temática terror de gênero, o trabalho Suporte Para Dois, des artistes Maia de Paiva(@maiadepaiva) e Danilo Arrabal(@daniloarrabal) aborda as possibilidades de dois corpos em overdose de convivência. O projeto foi selecionado pelo edital Poesias dos Escombros, iniciativa do projeto Transversalidades Poéticas, do Centro de Referência da Dança, mantido pela Prefeitura de São Paulo, sendo contemplado com um auxílio de R$800.
Maia e Danilo são um casal de artistas que cultivavam o desejo de trabalhar juntes, pois parecia completamente equivocado dividir tantos aspectos da intimidade e da vida, e não a criação. Os desentendimentos do processo criativo se assimilaram muito com os inerentes a qualquer love story: incompatibilidade, divergência, falta de paciência… Como equilibrar metodologia e intuição numa possibilidade que celebre as diferenças? O casal comprou um caderninho. Anotou as seguintes palavras: SUSTENTAR CARREGAR SUSPENDER MANTER LEVANTAR MOVER. E ao longo das experimentações acrescentaram, EQUILÍBRIO RISCO QUEDA (Queda foi especialmente difícil para a vizinhança, em especial a vizinha de baixo que cutucou o teto com uma vassoura). A proposta inicial foi a experimentação do próprio corpo em suas capacidades motoras em contraponto aos diversos trabalhos com casais cis em que o homem carrega a mulher. A busca não era por um campo metafórico ou simbólico, mas sim o discurso elaborado através da ação e a dúvida criativa: o corpo não binário MAIADANILO consegue se sustentar em qualquer situação? Principalmente na crescente tensão gerada pela hiperconvivência da quarentena. O trabalho foi filmado com um smartphone e publicado em três pílulas de vídeo para o Instagram. Es artistes trabalharam com um radical “working in progress” alterando a pesquisa a partir da interação de cada pílula com o público online. Os feedbacks, impressões, mensagens e emojis norteavam a criação da próxima pílula, além da distância entre idealizar um movimento e não encontrar a técnica para executá-lo. O casal segue em processo amoroso-criativo e vislumbra a possibilidade de fazer uma espécie de “manual de montagem” para diversos corpos se suportarem. É possível assistir as três pílulas nos Instagrams já citados. Suporte Para Dois também relaciona-se tematicamente com o trabalho “Amores Silícos” de Bernardo Oliveira disponível no Instagram @malocarte.
Comemoro a existência de todos esses trabalhos desenvolvidos durante a pandemia, que celebram a vida, e rearranjam a possibilidade do encontro. Já estou completamente embriagada de hiperlinks e arrobas, confundindo os espaços virtuais com os físicos, com vontade de tirar esse pijama e filmar alguma coisa também. Eu (@gambiarrassentimentais) torço para que a ressaca pandêmica também possa ser curada com água. Água é uma sabedoria.
[1] Júlia Kristeva (1970) – “História da linguagem”. Edições 70. Tradução de Maria Margarida Barahona.
[2] Grada Kilomba (2016) – A máscara. Cadernos de literatura em tradução n.16. Tradução de Jessica Oliveira de Jesus.
[3] Termo proposto pelo Facebook ao excluir contas que publicam nudez.
Lara Duarte é atriz e dramaturga.