Crítica da Crítica | Cênicas


Reflexões sobre poder, autoridade, egocentrismo e alteridade

Ao pensar sobre o texto que apresentaria à Barril, me senti tentado a tirar da gaveta algo já escrito da minha coleção particular. Mas, por fim, optei por sair do comodismo para propor reflexões capazes de dialogar com as características da revista. Pareceu-me coerente trazer à tona inquietações que habitam meus pensamentos acerca do fazer crítica. De antemão, é importante destacar que tais inquietações não se limitam ao papel daqueles que fazem da crítica o seu labor, mas incluem, também, aqueles que analisam processos e obras, como estudantes, artistas e também o público, já que este não deveria ser isentado de sua responsabilidade ao interagir com uma obra. É por essa razão que, para facilitar a compreensão do texto, me refiro aos críticos no plural, justo para abarcar a todos que se aventuram neste tipo de exercício.

Sabemos que a crítica adequada apresenta, para aquele que a elabora, a possibilidade de visibilidade e aquisição de poderes capazes de (des)legitimar uma criação. Não é ao acaso que os críticos são temidos e/ou bajulados por parte de artistas que, em muitas ocasiões, tornam-se o alvo central em direção ao qual flechas afiadas são lançadas. Em raras ocasiões a crítica viabiliza a interlocução com o próprio criticado ou, ao menos, é oferecida a este a possibilidade de respostas, configurando, assim, mais um produto do que um processo.

Infelizmente, a escassez de ambientes de interlocução tende a caracterizar a crítica enquanto um instrumento de julgamento unidirecional. É relevante considerar, entretanto, que a (des)legitimação de uma obra ou artista por uma crítica depende dos contextos onde esta circula, daqueles que a consomem, e do grau de autoridade que o crítico detém nestes contextos. Segundo Foucault, a autoridade constrói-se numa complexa trama que determina a ordem dos discursos, onde devem ser reconhecidos os interesses políticos implícitos. Se consideramos que o poder e a autoridade da crítica só são construídos através da apropriação da obra do outro – já que não existiriam críticos sem artistas e obras – podemos abandonar a crença de que tais produções estão famintas por cabeças a serem linchadas e assumi-las enquanto um tipo de ecologia solidária. Mas o que proponho com esta noção?

O senso comum considera a ecologia como o cuidado à natureza e ao meio ambiente. No entanto, num entendimento mais complexo, ela é definida como as análises/reflexões/processos/produtos das relações humanas, onde incluem-se, além das questões ambientais, aspectos econômicos, psicológicos, sociais e culturais. Este texto foca na ecologia enquanto um tipo de economia, no sentido mesmo de evitar o desperdício, neste caso, o desperdício da fala na crítica. Quanto à solidariedade, esta é aqui abordada enquanto uma prática que nada tem a ver com ensejos politicamente corretos, diplomáticos ou apaziguadores que tendem a agradar o outro, mas como o comprometimento de reconhecer que a ação está indissociada do pensamento-fala-discurso responsáveis. Deste modo, a ecologia por uma crítica solidária pode implicar em dissensos e, porque não dizer, numa dose de dor. No entanto, quando opera, objetiva a construção mais do que a destruição ou a destruição para reconstruir/co-construir.

Apresentados tais entendimentos, tensiono, aqui, as noções de egocríticas e altercríticas, e busco explicitar algumas relações de poder e autoridade implícitas em tais práticas. Numa primeira definição, as egocríticas são formulações analíticas respaldadas pela supervalorização do ego; já as altercríticas são aquelas que consideram a alteridade como condição de existência.

Defendo que a feitura de uma crítica exige a morte do egocentrismo. Digo isso porque, corriqueiramente, deparo-me com situações em que supostas análises e reflexões acerca de uma obra parecem já ter sido elaboradas antes mesmo que um processo ou produto artístico sejam compartilhados com o público. Paradoxal quando se trata da crítica, por certo, já que estas formas de produzir apresentam-se mais como replicações de manuais e fórmulas prontas do que reflexões capazes de colaborar com uma criação. É o limiar entre a crítica e a opinião. A egocrítica é vício automatizado do copy and paste, o plágio do discurso já pronto, seja este produzido por outros (como na desenfreada utilização de referências teóricas reescritas “com as próprias palavras”) ou o auto-plágio (quando a própria fala é replicada em todo e qualquer contexto sem considerar suas especificidades). É o tirar daqui e colocar ali, o elemento postiço que não considera se as certezas egocêntricas daquele que critica são, efetivamente, capazes de dialogar com o que está na obra: o sintoma esquizofrênico que aborda a crítica sob o entendimento comum de que ela é sinônimo de depreciação. Quando elaborada por um artista, a egocrítica é ainda mais perigosa, já que é preciso reconhecer que as escolhas, discursos, estéticas e estilos do outro não deveriam ser enclausurados no universo umbilical daquele que critica, sob o risco de transformar a arte num entediante mar de hegemonia.

 

Uma coisa é confrontar e questionar modos diferenciados de fazer, outra coisa é achar que o próprio modo de fazer deve ser imposto por ser o mais adequado e verdadeiro.

Considero equivocado que um artista analise, julgue e (des)legitime a obra do outro a partir de suas próprias convicções estéticas, mesmo que saibamos que confluências e tensões entre abordagens na arte contribuem para complexificar o fazer artístico. Uma coisa é confrontar e questionar modos diferenciados de fazer, outra coisa é achar que o próprio modo de fazer deve ser imposto por ser o mais adequado e verdadeiro. A verdade absoluta está velha, enferrujada e gagá. Por isso, devemos atentar que a egocrítica pode ser, perigosamente, a sobremesa no prato do sádico, sobretudo em tempos onde o protagonismo tende a ser a pílula para sanar frustrações; onde as redes sociais parecem autorizar todos a julgarem os demais; onde se confunde a diferença entre análises, produção de informação e opiniões e, por fim, em tempos onde as máximas instâncias de poder assumem seu lugar de ação a partir de golpes e autoritarismos.

A egocrítica opera no sentido contrário a uma ecologia solidária, já que o uso desenfreado da palavra produz desperdícios por ser incapaz de tecer diálogos contextualizados. Mas como é possível criticar considerando a ecologia solidária?

Recentemente a alteridade tem assumido o topo na hierarquia das palavras da moda e, de alguma maneira, apresenta uma dose de esperança de como ser-viver-estar em relação, inclusive na arte. Oriundo da filosofia, tal conceito implica na capacidade do sujeito de se colocar no lugar do outro, de traduzir este outro considerando e valorizando as diferenças e dissensos existentes. Entretanto, não podemos estar cegos para reconhecer que ainda existe um deserto separando os campos das ideias e das práticas, o que dificulta que tal conceito seja uma prática encarnada. A produção de altercríticas operam, então, no sentido de anular esse deserto para transformar a alteridade num estado de corpo, numa prática que permita refletir e analisar uma obra considerando o contexto e o processo do outro, que contribua para que o crítico migre de seus territórios cômodos e familiares para habitar universos estranhos/estrangeiros. A altercrítica repulsa o julgamento unidirecional e assume a criação conjunta, o confronto construtivo, o processo inacabado da interlocução capaz de minimizar os sintomas colaterais dos poderes opressores, centralizadores e excludentes que têm, como única função, garantir protagonismos, autoritarismos e poderes no mercado da arte. A altercrítica – respaldada pela ecologia solidária – implica na necessidade de ampliarmos nossa capacidade sensível de sermos afetados pelo outro, na repulsa ao anseio desgovernado de atropelar e amputar a subjetividade de uma obra, e na necessidade de abandonar a caverna platônica para compreender aspectos do mundo sem o vício do  Ctrl+c and Ctrl+v.

Interlocutores: Laura Pacheco, Lêda Muhana, Mab Cardoso e Rubén Tejedor.

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