Em um dia normal do bairro Rio Vermelho, mulheres apresentam no Largo da Mariquita o Cabaré Belas, Arretadas e Fora da Casinha. Em um dia normal para mim, que se tornou sinônimo de exaustão, faço todo esforço do mundo para caminhar até o largo e assistir suas proposições.
Tenho feito esse tipo de esforço desde o dia em que decidi, como posicionamento político, assistir tudo que fosse produzido por mulheres na cidade. Obviamente não consigo assistir tudo, mas o esforço existe. E iniciativas como essa surgirem de modo tão autônomo e auto-organizado já se configura como uma vitória. Não só nos tempos de hoje, mas sempre. Ocupar espaços públicos é um ato político. É colocar o corpo como manifesto, seja para reiterar a hegemonia ou confrontá-la.
Sendo um dia normal, próximo das festividades do São João, e levando em conta a movimentação da noite do Rio Vermelho, levei um tempo para encontrar o espaço que tinha sido reivindicado por estas mulheres, que era próximo de um palco onde uma banda animadamente tocava forró e um grupo de pessoas dançavam suas músicas.
Encontrei o espaço, mas não conseguia encontrar um bom lugar para me colocar e assistir. Havia um semicírculo de pessoas em pé que impossibilitavam, para quem, como eu, chegava atrasada, encontrar um bom lugar. Quando pensava em me irritar, repetia para mim: Estamos na rua. A rua tem leis próprias. Lide com isso.
Tive a impressão de que não houve um ensaio coletivo, mas apenas uma predeterminação da ordem de entrada, o que dava ao evento uma atmosfera caótica. Era visível a inexperiência de algumas na rua, embora fale isso do lugar de alguém que não tem nenhuma experiência e tem até bastante medo da rua. Mas, para mim, gritava aos olhos quando havia uma disputa com espaço público e quando havia um diálogo com ele. Considerando que o objetivo do evento (segundo a descrição na sua página no Facebook) era celebrar a atuação e empoderamento feminino na arte, toda experimentação deveria ser estimulada. Me perguntei por que não estava sendo generosa então, e até onde eu deveria ser.
No cabaré teve um pouco de tudo. Teve número de palhaçaria, teve lipsinc, teve obra em processo, teve número de contorcionismo, teve funk do parto humanizado etc. Como sou do tipo tiete, preciso dizer que fiquei apaixonada pela palhaça de Joice Aglae. Ela não teve um número. Era uma espécie de contrarregragem performativa, mas aquela atmosfera triste e mal humorada que emanava daquela palhaça roubava minha atenção sempre que ela se colocava. Mesmo que fosse para entregar um microfone, ou para verificar se estava tudo certo.
Depois de insistir, torcer e discretamente ir abrindo espaço, consigo um excelente lugar para ver. Então, como uma grande pegadinha da rua, chove. Chove torrencialmente no final de uma apresentação.
Enquanto todo mundo correu para se abrigar nos stands da feirinha armados no largo, eu fiquei parada assistindo Bafuda (palhaça de Felícia de Castro) receber a chuva. Nesse momento, era como se naquele largo só existíssemos nós duas. Pensei: Talvez devesse me arriscar e fazer algo na rua. Não pesquiso presença? Não me interessa pensar os fluxos das relações que se estabelecem durante um acontecimento cênico? Haveria algum lugar mais desafiador para isso do que a rua? Seria aquela relação entre nós duas um sinal?
Depois que a chuva passou, as pessoas voltaram e o cabaré recomeçou. Eram 11 artistas e ainda tinha muita água para rolar.
No novo lugar em que fiquei depois da nova organização daquele espaço, era possível observar a audiência, e ao fazer isso senti um aperto na região do osso esterno, característica da angústia. As mulheres disseram: “A arte de rua tem valor fundamental pra nossa sociedade através da inclusão social, levando atrações para as pessoas que nunca teriam possibilidade de assistir um espetáculo.”[1].mas ao olhar pro lado, eu via as mesmas pessoas que encontro ao assistir coisas em espaços fechados.
Me distanciei, já era final do evento, e fui fumar um cigarro, quando ouço: O Rapaaaa. E vejo todos os ambulantes correndo com suas mercadorias para que não fossem apreendidas, enquanto tomávamos as nossas cervejas que já haviam sido compradas com eles mais cedo. E continuávamos nossas conversas sobre a “situação atual da política”. Como se não houvesse conexões entre uma coisa e a outra. O aperto aumentou.
A estrutura do Cabaré foi sendo desmontada, as palhaças foram tirando os narizes, as performers foram se trocando e aos poucos foram se retirando. Mas aí aconteceu outra mágica. O cabaré saiu, mas o espaço não foi desocupado. E organicamente outras coisas foram acontecendo ali. De ensaios a conversas, selfies, danças e afins. Isso é uma das coisas que mais admiro em iniciativas na rua. Depois que o espaço foi marcado como um espaço ocupável ele permanece ocupado. E dessa vez, majoritariamente por mulheres. Todas lindamente fora da casinha. Exceto as ambulantes, que tiveram de sair correndo.
[1] Texto encontrado na página do evento, disponível no link