Cênicas


Foto: Davi Barros Foto: Davi Barros

Cada época possui suas enfermidades fundamentais. […] Apesar do medo imenso que temos hoje de uma pandemia gripal, não vivemos numa época viral. Graças à técnica imunológica, já deixamos para trás essa época.

parágrafo de abertura de A sociedade do cansaço, Byung Chul Han, 2010. 

 

Não deixa de ser interessante que apenas dez anos após a publicação de A sociedade do cansaço, a pandemia do COVID tenha se encarregado de falsear parte do argumento de Byung-Chul Han a respeito do tédio e da desvitalização da vida social na sociedade contemporânea. Naquele ensaio, o filósofo retomava o argumento de Susan Sontag (Ver A doença como metáfora) a respeito das enfermidades fundantes de cada momento histórico. Categórico, o autor afirmava que o presente poderia ser descrito como a época neuronal, ou seja, marcada pelos males psíquicos – burnout, TDAH, depressão, ansiedade, etc e pelo seu contrapelo, a performance medicamentosa da atenção e da libido em tempos de distração e tédio. Com o arremate já deixamos para trás, o autor declarou que a época imunológica – portanto, viral – estaria superada. Mal sabia ele que morderia a língua tão cedo. 

O aspecto viral de nossas vidas não apenas não foi superado como foi intensificado à enésima potência. De tão fundante, virou verbo. Não podemos ignorar o fato de que viralizar é parte fundamental do vocabulário e dos modos de nossa época desde antes da pandemia. E depois dela pode-se dizer que tornar viral, comportar-se como vírus, alcançar (ou contaminar) o maior número de pessoas, figura entre os maiores medos e maiores desejos desse tempo. Assim, alcance e contaminação são parte de uma dupla face do mesmo fenômeno. Qualquer pessoa hoje com acesso à internet entende isso sem maiores explicações. Se é justamente o livro do pensador teuto-coreano um dos motes conceituais que impulsionam a criação do trabalho Dança Cansada, do Grupo Outras Danças coreografado por Ramon Moura, dançado por elenco de nove intérpretes nas noites de 25, 26 e 27 de julho no Museu de Arte da Bahia. Apresentado em curta temporada no MAB em  conexão com o Teatro Vila Velha,  é sob o auspício desse equívoco filosófico que começo a análise da obra. Um exame mais minucioso do caso mostra que, muitas vezes, para a arte, a matéria do engano, da tradução imprecisa e do deslocamento são vias criativas. 

 

ALGORITMO E REPETIÇÃO  

Se Sociedade do Cansaço ignorou o aspecto viral como categoria analítica do presente, Dança Cansada não faz o mesmo. No trabalho, a lógica algorítmica torna-se parte de sua matéria prima não só quando utiliza ring lights e coreografias frontais e repetitivas ao modo Tik Tok. Dá para afirmar que neste espetáculo também trabalha um anti-algoritmo, ou melhor, um algoritmo de outro tempo: o desejo pela estética de companhia-de-dança, uma forma que subsiste mesmo sem uma companhia de dança, em seus termos tradicionais, que a ampare. Nesse sentido, a repetição enquanto estratégia coreográfica pode aludir a um certo caráter maquínico, exaustivo e talvez tedioso, desvitalizado. Isso tudo é consonante com Byung-Chul Han. Mas cabe sublinhar que a repetição no contexto coreográfico em questão tem outra camada. Na estética companhia de dança, a repetição é luxo e não regra desvitalizante de um mundo maquínico, uma vez que é o horizonte profissional mais raro nos dias de hoje, e se existe – no caso do Brasil – é algo que se dá sobretudo nos modelos subvencionadas pelo estado. Ou seja, este modelo, embora esteja talvez em vias de desaparecimento, continua a ecoar como estética; é algo palpável na sua forma composicional. Assim, assistir ao espetáculo também projeta, noutro plano, sua preparação: à cena provável de rotina de sala de ensaio e aulas específicas nas quais certos códigos e estruturas coreográficas são repetidas e esmerilhadas por um grupo numeroso de pessoas, todas reunidas em torno da figura do coreógrafo com o imenso desejo de emprestar seus corpos às suas ideias e às suas linhas.  Como antídoto para a selfie, dançar para outro implica numa dessubjetivação que é por si só, um anti-viral.

A preparação é um duplo da cena que podemos apenas imaginar já que existe apenas como um negativo nunca revelado, uma espécie de quimera, o que não deixa de ser bonito e triste. Esse tipo específico de espetacularidade é reforçada pelo ambiente museal do MAB, com todo seus rodapés barrocos, com todo seu peso antigo e com toda sua suposta capacidade de conservação de coisas para uma posteridade. Enquanto é dançado, o trabalho se realiza a despeito das condições de pouco ou nenhum financiamento, infra-estrutura e rotina ideal daquele projeto que uma certa geração de artistas da dança sonhou como o trabalho profissional na área. Assim como o DNA de um vírus, que para se manter vivo precisa se replicar ao infinito, a dança não pode ser conservada senão por replicação. Fica a pergunta: poderia então a dança ser conservada num museu?  

 

DANÇAS-DOCUMENTO OU PEÇAS DE MUSEU

 Ao entendermos as danças como documentos do mundo, podemos olhar para um trabalho coreográfico de muitos modos: há quem assista esse tipo de coisa como quem preenche um caça-palavras, pescando uma certa literalidade nos elementos articulados pela obra em analogias diretas com o “mundo real” e com o tempo presente; há quem procure algum tipo de essência, de mote central do trabalho, uma espécie de “coração do coração” da coisa; há quem se dedique à observação das filiações e apropriações; há quem se concentre em como os contextos de produção, financiamento e apresentação compõem coisas no mundo; em todo caso, vale prestar atenção no trabalho, em seus elementos próprios e emprestados – sua gramática e semântica – em relação  aos territórios de onde ela emerge  e nos quais se exibe. Se toda relação no plano estético será sempre transformada pela interface histórica da nossa recepção, Dança Cansada soa como uma valsa de adeus dançada a esta altura do campeonato do mundo, na qual subsiste como acontecimento que acena à sua própria desintegração. Curioso notar que se o mesmo trabalho fosse criado e apresentado antes de 2020, talvez tivesse outro retrogosto. Mas os tempos mudam as obras. De certo modo, um trabalho que continue a se apresentar por longos períodos de tempo não morre (considerando condições de produção e circulação ideais), ele passa a falar diferentemente, pois são máquinas ininterruptas de produção de sentido e sensibilidade. E continuam a trabalhar mesmo a despeito das intenções de seus criadores. Assim, o cansaço elaborado por Ramon Moura junto ao Outras Danças alude a novas e velhas categorias de cansaço. O resultado coincide com o mundo com um certo desencaixe em relação a ele, pois, inaugura novos modos de vê-lo se senti-lo.: são velhas formas dizendo novas coisas. 

 

O PARENTESCO DOS VÍRUS

Ao chegar na sala do museu de arte da Bahia, a coisa já tinha começado. O mundo já estava acelerado antes da nossa chegada, por assim dizer. Aquele agrupamento quase centralizado de nove pessoas em movimento multivetorial, quase sem deslocamento pelo tabuleiro do palco, sob roupas em cortes e volumes de alfaiataria desconstruída, remetem brevemente a  “Nii – Nada novo sob o sol” (2015) coreografado por Neemias Santana e também dançado por Ramon Moura, há dez anos atrás. Neste outro trabalho, a matéria do cansaço no sentido do tédio e da repetição eterna dos ciclos universais também aparecia e também acenava a Byung-Chul Han. Já Dança Cansada desenvolve-se por outro território gestual que não o da improvisação por circularidades; pode-se ver, de certo modo, um pouco da história da dança recente da própria cidade, ao menos a história da dança recente que formou seu coreógrafo bem como uma certa geração de artistas da dança. 

È possível notar, portanto, influências tanto do Nii Colaboratório da primeira fase (2015 – 2017), quanto certa assinatura de movimento do próprio coreógrafo –  vocabulários de códigos específicos de movimento como técnicas de dança moderna a la José Limón technique, temperado com uma releitura abaianada das formas entre Merce Cunningham e Isadora Duncan (= espaço retilíneo e corpos precisamente espiralados), como elaborado pela assinatura coreográfica observável nas aulas de Ramon Moura na última década e na sua relação de parentesco direto com o trabalho do artista Matias Santiago, cuja atuação como formador de profissionais em dança, desde o início dos anos 2000, na escola de dança da Funceb e no Balé Jovem de Salvador, é influência notória para algumas gerações de artistas, o que inclui o trabalho de Moura. De outro modo, a cena dos ringlights provocam um certo humor que não deixam de evocar, por um breve instante, o ambiente anarco-coreográfico do grupo Sem companhia de dança,uma espécie de anti-companhia de dança, já extinto na cidade que existiu entre a metade da primeira década dos anos 2000 até meados da segunda.    

Há também escolha pelos tons frios cuja frieza pode ser encontrada nas ambientações de uma certa fase do futurismo softhigh-tech no cinema hollywoodiano dos anos 2000 (Minority Report, Inteligência Artificial, ambos de Steven Spielberg, mas poderia citar outros exemplos). Em dados momentos surge uma quentura luminosa em vermelho que é pontual o suficiente para configurar exceção. Essas aparições recaem em tons mais voltados à iluminação de saídas de emergência, ambulâncias ou viaturas policiais. Ou um vermelho robótico e frio do supercomputador HAL 9000 no clássico de Kubrick, o “2001 uma odisseia no espaço”.      

   

EPÍLOGO ANTI-VIRAL

Século XXI, Brasil. O cenário pode ser desolador mas não é tedioso: as dinâmicas sociais no mundo pós pandêmico apresentaram muitos outros desafios para além da superação sanitária do COVID 19. Há um genocídio em curso, e, com ele, um clima de terceira guerra mundial no ar. Batalhas de desinformação e disputas acerca da verdade animam levantes da extrema direita pelo mundo. Há uma certa facistização dos estados nacionais e teocracias bélicas reivindicam seu espaço em terrenos democráticos. Escravos da produtividade e do infocapitalismo, vemo-nos diante dos desafios trazidos pelo desenvolvimento das IA ‘s num tipo inédito de  concentração de riquezas promovido pelas big techs e grandes corporações. Assistimos a tudo isso de nossos celulares em scrolling infinito enquanto tentamos sobreviver em meio à precarização generalizada daquilo que as gerações anteriores conheciam como trabalho e emprego. Que estamos todos cansados, é fato. O cansaço presente no título da obra Dança Cansada parece aludir a uma exaustão que extrapola àquela estritamente trabalhada na cena. Enfim, faz muito sentido agora chamar danças que já foram hegemônicas como “outras danças”, uma vez que não contam com as  mesmas estruturas hegemônicas de financiamento que as produziram e sustentaram…  

 

 

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